Manifesto MOBICICLETA - COVID-19 E MOBILIDADE

A COVID-19 nos nocauteou. E nocauteou de jeito. Não seria nenhuma novidade se pensássemos que é um tipo de tragédia anunciada, pois sabemos que de tempos em tempos a natureza dá um chega pra lá nessa humanidade sem educação.
A natureza e o meio ambiente são estruturados em redes de cooperação e não é de se estranhar que nós, humanos focados no ter e na labuta diária fundamentada na interação competitiva, uma hora teríamos que pagar um “pedágio”.
Aliás, esse é justamente o ponto: convivência competitiva x convivência colaborativa. Nossos modelos de consumo e produção somente focados no imediatismo não são sustentáveis e o contexto atual escancarou essa esquizofrenia. Mas isso pode representar uma oportunidade.
Para aqueles que veem a mobilidade como uma das questões centrais de nosso tempo e que foi colocada em xeque no contexto da pandemia, fica a seguinte lição: devemos aproveitar para insistir que o aqui e o agora exige a mudança do paradigma de mobilidade atual. O Sars-Cov-2 chegou e fez o que nenhuma revolução foi capaz e de forma bem visual, expondo o impacto da circulação de pessoas feito prioritariamente a partir de combustíveis fósseis, circulação essa pensada a partir de uma lógica excludente e antieconômica.
O problema está aí. Já muito discutido pelas universidades em centenas de teses e pela sociedade civil em milhares de manifestos e movimentos. Aquela “preguiça” do poder público, aliada à má vontade ou resistência, não pode nesse momento se utilizar das velhas e desgastadas desculpas para inviabilizar a mudança. Além de condições propícias, temos situações que nos servem bons exemplos dos problemas e dos respectivos ajustes.
O papel do Estado foi oportunamente descortinado em seu mais primordial aspecto, que é prover às pessoas serviços básicos e o devido acesso aos mesmos. Para além da discussão do acesso das pessoas aos serviços de saúde, vem à tona também na discussão a forma como a mobilidade impacta as pessoas, não se tratando somente de circulação de pessoas e bens, mas da circulação de coisas que relacionam pessoas ao serviços, tendo como bom exemplo seria o transporte de amostras laboratoriais.
O esvaziamento das vias públicas observado durante a pandemia, por sua vez, ressalta uma outra reflexão importante: modelo de desenvolvimento urbano e viário adotado até então e os parâmetros de desenvolvimento utilizados nas políticas municipais de regulação de uso do solo.
A dificuldade em estabelecer uma circulação mais segura de pessoas, especialmente considerando a malha de transporte público e as conexões com outros modais, paradoxalmente está relacionada a esse esvaziamento das vias, pois uma das discussões centrais no momento em algumas cidades é justamente a flexibilização das medidas restritivas e como garantir que essa flexibilização não ocasione um agravamento incontrolável da pandemia.
Nesse sentido, abordar o incômodo assunto do modelo de distribuição das concessões de transporte e a falta de parâmetros nesse modelo que visem a otimização dos trajetos prioritariamente à otimização do retorno financeiro do serviço, seria crucial. Essa questão assume outra relevância no contexto da pandemia, pois escancara como é impactante, do ponto de vista sistêmico, um sistema público de transporte que não esteja voltado para a facilitação da circulação de pessoas, independente da lógica imobiliária.
É primordial que nesse momento sejam apresentadas políticas públicas que desonerem os meios de transporte não poluentes, que evitem aglomerações e que sejam mais baratos. É crucial que seja implementada uma política local, regional e nacional de incentivo a diferentes modais que se enquadrem nesta situação, como a bicicleta por exemplo, e que esta política vise a segurança da circulação e seja perene. Que as obras públicas absorvam essa visão de modo a não mais construir pontes ou viadutos sem considerar esse tipo de mobilidade, que nas obras públicas as vias sejam constituídas com calçadas e vias de circulação, sempre dando preferência ao pedestre e aos outros transportes ativos. Esse é o momento para que o poder público de municípios e estados se libertem de políticas públicas atadas a um modelo antiquado de mobilidade focado nos veículos automotores individuais. Esse é o momento para ousar, entrar definitivamente no futuro.
Cidades do mundo todo estão se mobilizando para fazerem mudanças substanciais porque entenderam as implicações desse momento. Cidades que têm distintas dimensões territoriais, populações, capacidade técnica, orçamentos disponíveis e níveis diferenciados de governança. Várias iniciativas estão sendo propostas incorporando ações e planejamentos a curto, médio e longo prazo.
O estímulo, inclusive com aporte financeiro, ao uso preferencial da bicicleta em determinados locais/situações é uma dessas propostas a curto prazo. Esse estímulo, por vezes apresentado em planos de governo ou planejamento de políticas públicas como perspectiva a ser implantada em longo prazo, já é entendida por governantes de cidades importantes como uma iniciativa neste momento paralela de combate à pandemia.
Paris, em função da Pandemia, iniciou a implantação de 650 km de ciclovias. A promessa de que as ruas de Paris se tornariam cycle-friendly antes da COVID já existia, mas a execução das ações foi acelerada às custas do espaço reservado ao transporte motorizado devido ao receio do aumento do tráfico de veículos devido às restrições e 72% de espaços reservados ao estacionamento de carros foram removidos.
Em Milão na Itália, que já foi o epicentro da COVID na Europa, o planejamento pós lockdown inclui 35 km de ruas tornadas mais acessíveis a pedestres e ciclistas. Chamado de Strade Aperte, o plano realoca espaços das vias reservados ao transporte motorizado para o uso por pedestres e ciclistas, inclusive criando novas rotas cicloviárias urbanas.
Outras cidades européias tem instituído planos de remodelamento temporários de suas vias em meio à pandemia, tais como Berlim, Montpellier, Budapeste e outras, usando dispositivos como fitas removíveis e sinais móveis para demarcar os espaços destinados a ciclistas, de forma que a instalação e desinstalação sejam fáceis e rápidas.
No continente americano, a Cidade do México que apresentou plano de implantação de novas ciclovias visando evitar aglomerações no transporte coletivo, iniciativas similares foram realizadas em Medellín, Oakland, Denver. A cidade de Bogotá, na Colômbia, anunciou em março a habilitação de 76 novos quilômetros de faixas destinadas a bicicletas, localizadas em vias existentes, mas separadas dos carros por cones.  
Esse insight dos governantes se baseia no entendimento oportuno de que o estímulo ao uso da bicicleta é uma forma de evitar que as pessoas utilizem transporte coletivo contribuindo para a formação de aglomerações. Em médio e longo prazo, descortinam-se infinitas possibilidades de auxílio à retomada econômica, aliadas à diminuição dos gastos públicos com poluição, segurança, restauração de circuitos comerciais etc.
Como propostas concretas observamos a instauração de vias temporárias e permanentes de circulação preferencial de bicicletas, a limitação da circulação de automóveis como forma de priorizar a circulação de pessoas e serviços essenciais, inserção de oficinas de bicicletas como estabelecimentos essenciais, redução ou remoção das tarifas para utilização dos sistemas de bicicletas compartilhadas são alguns exemplos e a criação de novas infraestruturas temporárias ou não que estimulem a caminhabilidade e o uso da bicicleta.
E no Brasil? E No estado de São Paulo? E em Ribeirão Preto? Como esses desafios relacionados à mobilidade estão sendo enfrentados?
O decreto estadual de São Paulo 64881 de 22/03/2020 estabelece que oficinas de bicicletas estão contempladas como “serviços essenciais”, mostrando o reconhecimento do estado de que esse meio de transporte representa um papel importante na locomoção de trabalhadores. No entanto, não há nenhum plano, quer no âmbito estadual, quer no âmbito municipal, de implantação de ciclovias temporárias ou de adequação de rotas preferenciais considerando a necessidade de conexão de bairros ao centro, aos serviços de saúde, desconsiderando inclusive a necessidade de diminuir ao máximo o impacto que a falta de segurança na circulação por este modal possa representar na rede de saúde no caso acidentes. Há que se considerar também, a crescente circulação de entregadores que se utilizam deste meio de transporte.
A restrição da circulação de automóveis na cidade de São Paulo por meio de instituição de rodízio, mostrou-se uma medida bastante questionável, e cuja lógica que a fundamentava poderia ter sido alcançada com estratégias de estímulo de outras estratégias, como associação inteligente de modais.
A questão das aglomerações nos pontos de transporte público então tem sido muito observada e não há uma estratégia municipal para mitigá-la. O transporte público é crucial tanto para a manutenção da oferta de serviços básicos, pois muitos trabalhadores dependem desse modal, tanto para a maior disseminação do coronavirus, caso medidas de contenção não sejam firmemente impostas quando de seu uso.
Uma nova realidade se apresenta após a pandemia. Cabe a nós dizermos o que queremos nesse “novo normal”.
Luka Freitas – Mobicicleta
Reportagens referência das ações citadas nos países:

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